Dispõe sobre a ética, a transparência e a governança na produção e no uso de Inteligência Artificial no Poder Judiciário e dá outras providências
cumprdec 0007850-37.2020.2.00.0000
O PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, no uso de suas atribuições legais e regimentais;
CONSIDERANDO que a Inteligência Artificial, ao ser aplicada no Poder Judiciário, pode contribuir com a agilidade e coerência do processo de tomada de decisão;
CONSIDERANDO que, no desenvolvimento e na implantação da Inteligência Artificial, os tribunais deverão observar sua compatibilidade com os Direitos Fundamentais;
CONSIDERANDO que a Inteligência Artificial aplicada nos processosde tomada de decisão deve atender a critérios éticos de transparência, previsibilidade, possibilidade de auditoria e garantia de imparcialidade e justiça substancial;
CONSIDERANDO que as decisões judiciais apoiadas pela InteligênciaArtificial devem preservar a igualdade, a não discriminação, a pluralidade, a solidariedade e o julgamento justo, com a viabilização de meios destinados a eliminar ou minimizar a opressão, a marginalização do ser humano e os erros de julgamento decorrentes de preconceitos;
CONSIDERANDO que os dados utilizados no processo de aprendizado de máquina deverão ser provenientes de fontes seguras, preferencialmente governamentais, passíveis de serem rastreados e auditados;
CONSIDERANDO que, no seu processo de tratamento, os dados utilizados devem ser eficazmente protegidos contra riscos de destruição, modificação, extravio, acessos e transmissões não autorizadas;
CONSIDERANDO que o uso da Inteligência Artificial deve respeitar a privacidade dos usuários, cabendo-lhes ciência e controle sobre o uso de dados pessoais;
CONSIDERANDO que os dados coletados pela Inteligência Artificial devem ser utilizados de forma responsável para proteção do usuário;
CONSIDERANDO que a utilização da Inteligência Artificial deve se desenvolver com vistas à promoção da igualdade, da liberdade e da justiça, bem como para garantir e fomentar a dignidade humana;
CONSIDERANDO o contido na Carta Europeia de Ética sobre o Uso da Inteligência Artificial em Sistemas Judiciais e seus ambientes;
CONSIDERANDO a ausência, no Brasil, de normas específicas quanto à governança e aos parâmetros éticos para o desenvolvimento e uso da Inteligência Artificial;
CONSIDERANDO as inúmeras iniciativas envolvendo Inteligência Artificial no âmbito do Poder Judiciário e a necessidade de observância de parâmetros para sua governança e desenvolvimento e uso éticos;
CONSIDERANDO a competência do Conselho Nacional de Justiça para zelar pelo cumprimento dos princípios da administração pública no âmbito do Poder Judiciários, à exceção do Supremo Tribunal Federal, conforme art. 103-B, § 4º, II, da Constituição da República Federativa do Brasil;
CONSIDERANDO a decisão proferida pelo Plenário do Conselho Nacional de Justiça no julgamento do Procedimento de Ato Normativo nº 0005432-29.2020.2.00.0000, na 71ª Sessão Virtual, realizada em a 14 de agosto de 2020;
RESOLVE:
CAPÍTULO I
DAS DISPOSIÇÕES GERAIS
Art. 1º O conhecimento associado à Inteligência Artificial e a suaimplementação estarão à disposição da Justiça, no sentido de promover e aprofundarmaior compreensão entre a lei e o agir humano, entre a liberdade e as instituiçõesjudiciais.
Art. 2º A Inteligência Artificial, no âmbito do Poder Judiciário, visa promover o bem-estar dos jurisdicionados e a prestação equitativa da jurisdição, bem como descobrir métodos e práticas que possibilitem a consecução desses objetivos.
Art. 3º Para o disposto nesta Resolução, considera-se:
I – Algoritmo: sequência finita de instruções executadas por um programa de computador, com o objetivo de processar informações para um fim específico;
II – Modelo de Inteligência Artificial: conjunto de dados e algoritmos computacionais, concebidos a partir de modelos matemáticos, cujo objetivo é oferecer resultados inteligentes, associados ou comparáveis a determinados aspectos do pensamento, do saber ou da atividade humana;
III – Sinapses: solução computacional, mantida pelo Conselho Nacional de Justiça, com o objetivo de armazenar, testar, treinar, distribuir e auditar modelos de Inteligência Artificial;
IV – Usuário: pessoa que utiliza o sistema inteligente e que tem direito ao seu controle, conforme sua posição endógena ou exógena ao Poder Judiciário, pode ser um usuário interno ou um usuário externo;
V – Usuário interno: membro, servidor ou colaborador do Poder Judiciário que desenvolva ou utilize o sistema inteligente;
VI – Usuário externo: pessoa que, mesmo sem ser membro, servidor ou colaborador do Poder Judiciário, utiliza ou mantém qualquer espécie de contato com o sistema inteligente, notadamente jurisdicionados, advogados, defensores públicos, procuradores, membros do Ministério Público, peritos, assistentes técnicos, entre outros.
CAPÍTULO II
DO RESPEITO AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Art. 4º No desenvolvimento, na implantação e no uso da Inteligência Artificial, os tribunais observarão sua compatibilidade com os Direitos Fundamentais, especialmente aqueles previstos na Constituição ou em tratados de que a República Federativa do Brasil seja parte.
Art. 5º A utilização de modelos de Inteligência Artificial deve buscar garantir a segurança jurídica e colaborar para que o Poder Judiciário respeite a igualdade de tratamento aos casos absolutamente iguais.
Art. 6º Quando o desenvolvimento e treinamento de modelos de Inteligência exigir a utilização de dados, as amostras devem ser representativas e observar as cautelas necessárias quanto aos dados pessoais sensíveis e ao segredo de justiça. Parágrafo único. Para fins desta Resolução, são dados pessoais sensíveis aqueles assim considerados pela Lei nº13.709/2018, e seus atos regulamentares.
CAPÍTULO III
DA NÃO DISCRIMINAÇÃO
Art. 7º As decisões judiciais apoiadas em ferramentas de Inteligência Artificial devem preservar a igualdade, a não discriminação, a pluralidade e a solidariedade, auxiliando no julgamento justo, com criação de condições que visem eliminar ou minimizar a opressão, a marginalização do ser humano e os erros de julgamento decorrentes de preconceitos.
§ 1º Antes de ser colocado em produção, o modelo de Inteligência Artificial deverá ser homologado de forma a identificar se preconceitos ou generalizações influenciaram seu desenvolvimento, acarretando tendências discriminatórias no seu funcionamento.
§ 2º Verificado viés discriminatório de qualquer natureza ou incompatibilidade do modelo de Inteligência Artificial com os princípios previstos nesta Resolução, deverão ser adotadas medidas corretivas.
§ 3º A impossibilidade de eliminação do viés discriminatório do modelo de Inteligência Artificial implicará na descontinuidade de sua utilização, com o consequente registro de seu projeto e as razões que levaram a tal decisão.
CAPÍTULO IV
DA PUBLICIDADE E TRANSPARÊNCIA
Art. 8º Para os efeitos da presente Resolução, transparência consiste em:
I – divulgação responsável, considerando a sensibilidade própria dos dados judiciais;
II – indicação dos objetivos e resultados pretendidos pelo uso do modelo de Inteligência Artificial;
III – documentação dos riscos identificados e indicação dos instrumentos de segurança da informação e controle para seu enfrentamento;
IV – possibilidade de identificação do motivo em caso de dano causado pela ferramenta de Inteligência Artificial;
V – apresentação dos mecanismos de auditoria e certificação de boas práticas;
VI – fornecimento de explicação satisfatória e passível de auditoria por autoridade humana quanto a qualquer proposta de decisão apresentada pelo modelo de Inteligência Artificial, especialmente quando essa for de natureza judicial.
CAPÍTULO V
DA GOVERNANÇA E DA QUALIDADE
Art. 9º Qualquer modelo de Inteligência Artificial que venha a ser adotado pelos órgãos do Poder Judiciário deverá observar as regras de governança de dados aplicáveis aos seus próprios sistemas computacionais, as Resoluções e as Recomendações do Conselho Nacional de Justiça, a Lei nº 13.709/2018, e o segredo de justiça.
Art. 10. Os órgãos do Poder Judiciário envolvidos em projeto de Inteligência Artificial deverão:
I – informar ao Conselho Nacional de Justiça a pesquisa, o desenvolvimento, a implantação ou o uso da Inteligência Artificial, bem como os respectivos objetivos e os resultados que se pretende alcançar;
II – promover esforços para atuação em modelo comunitário, com vedação a desenvolvimento paralelo quando a iniciativa possuir objetivos e resultados alcançados idênticos a modelo de Inteligência Artificial já existente ou com projeto em andamento;
III – depositar o modelo de Inteligência Artificial no Sinapses.
Art. 11. O Conselho Nacional de Justiça publicará, em área própria de seu sítio na rede mundial de computadores, a relação dos modelos de Inteligência Artificial desenvolvidos ou utilizados pelos órgãos do Poder Judiciário.
Art. 12. Os modelos de Inteligência Artificial desenvolvidos pelos órgãos do Poder Judiciário deverão possuir interface de programação de aplicativos (API) que permitam sua utilização por outros sistemas.
Parágrafo único. O Conselho Nacional de Justiça estabelecerá o padrão deinterface de programação de aplicativos (API) mencionado no caput deste artigo.
CAPÍTULO VI
DA SEGURANÇA
Art. 13. Os dados utilizados no processo de treinamento de modelos de Inteligência Artificial deverão ser provenientes de fontes seguras, preferencialmente governamentais.
Art. 14. O sistema deverá impedir que os dados recebidos sejam alterados antes de sua utilização nos treinamentos dos modelos, bem como seja mantida sua cópia (dataset) para cada versão de modelo desenvolvida.
Art. 15. Os dados utilizados no processo devem ser eficazmente protegidos contra os riscos de destruição, modificação, extravio ou acessos e transmissões não autorizados.
Art. 16. O armazenamento e a execução dos modelos de Inteligência Artificial deverão ocorrer em ambientes aderentes a padrões consolidados de segurança da informação.
CAPÍTULO VII
DO CONTROLE DO USUÁRIO
Art. 17. O sistema inteligente deverá assegurar a autonomia dos usuários internos, com uso de modelos que:
I – proporcione incremento, e não restrição;
II – possibilite a revisão da proposta de decisão e dos dados utilizados para sua elaboração, sem que haja qualquer espécie de vinculação à solução apresentada pela Inteligência Artificial.
Art. 18. Os usuários externos devem ser informados, em linguagem clara e precisa, quanto à utilização de sistema inteligente nos serviços que lhes forem prestados.
Parágrafo único. A informação prevista no caput deve destacar o caráter não vinculante da proposta de solução apresentada pela Inteligência Artificial, a qual sempre é submetida à análise da autoridade competente.
Art. 19. Os sistemas computacionais que utilizem modelos de Inteligência Artificial como ferramenta auxiliar para a elaboração de decisão judicial observarão, como critério preponderante para definir a técnica utilizada, a explicação dos passos que conduziram ao resultado.
Parágrafo único. Os sistemas computacionais com atuação indicada no caput deste artigo deverão permitir a supervisão do magistrado competente.
CAPÍTULO VIII
DA PESQUISA, DO DESENVOLVIMENTO E DA IMPLANTAÇÃO DE SERVIÇOS DE INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
Art. 20. A composição de equipes para pesquisa, desenvolvimento e implantação das soluções computacionais que se utilizem de Inteligência Artificial será orientada pela busca da diversidade em seu mais amplo espectro, incluindo gênero, raça, etnia, cor, orientação sexual, pessoas com deficiência, geração e demais características individuais.
§ 1º A participação representativa deverá existir em todas as etapas do processo, tais como planejamento, coleta e processamento de dados, construção, verificação, validação e implementação dos modelos, tanto nas áreas técnicas como negociais.
§ 2º A diversidade na participação prevista no caput deste artigo apenas será dispensada mediante decisão fundamentada, dentre outros motivos, pela ausência de profissionais no quadro de pessoal dos tribunais.
§ 3º As vagas destinadas à capacitação na área de Inteligência Artificial serão, sempre que possível, distribuídas com observância à diversidade.
§ 4º A formação das equipes mencionadas no caput deverá considerar seu caráter interdisciplinar, incluindo profissionais de Tecnologia da Informação e de outras áreas cujo conhecimento científico possa contribuir para pesquisa, desenvolvimento ou implantação do sistema inteligente.
Art. 21. A realização de estudos, pesquisas, ensino e treinamentos de Inteligência Artificial deve ser livre de preconceitos, sendo vedado:
I – desrespeitar a dignidade e a liberdade de pessoas ou grupos envolvidos em seus trabalhos;
II – promover atividades que envolvam qualquer espécie de risco ou prejuízo aos seres humanos e à equidade das decisões;
III – subordinar investigações a sectarismo capaz de direcionar o curso da pesquisa ou seus resultados.
Art. 22. Iniciada pesquisa, desenvolvimento ou implantação de modelos de Inteligência Artificial, os tribunais deverão comunicar imediatamente ao Conselho Nacional de Justiça e velar por sua continuidade.
§ 1º As atividades descritas no caput deste artigo serão encerradas quando, mediante manifestação fundamentada, for reconhecida sua desconformidade com os preceitos éticos estabelecidos nesta Resolução ou em outros atos normativos aplicáveis ao Poder Judiciário e for inviável sua readequação.
§ 2º Não se enquadram no caput deste artigo a utilização de modelos de Inteligência Artificial que utilizem técnicas de reconhecimento facial, os quais exigirão prévia autorização do Conselho Nacional de Justiça para implementação.
Art. 23. A utilização de modelos de Inteligência Artificial em matéria penal não deve ser estimulada, sobretudo com relação à sugestão de modelos de decisões preditivas.
§ 1º Não se aplica o disposto no caput quando se tratar de utilização de soluções computacionais destinadas à automação e ao oferecimento de subsídios destinados ao cálculo de penas, prescrição, verificação de reincidência, mapeamentos, classificações e triagem dos autos para fins de gerenciamento de acervo.
§ 2º Os modelos de Inteligência Artificial destinados à verificação de reincidência penal não devem indicar conclusão mais prejudicial ao réu do que aquela a que o magistrado chegaria sem sua utilização.
Art. 24. Os modelos de Inteligência Artificial utilizarão preferencialmente software de código aberto que:
I – facilite sua integração ou interoperabilidade entre os sistemas utilizados pelos órgãos do Poder Judiciário;
II – possibilite um ambiente de desenvolvimento colaborativo;
III – permita maior transparência;
IV – proporcione cooperação entre outros segmentos e áreas do setor público e a sociedade civil.
CAPÍTULO IX
DA PRESTAÇÃO DE CONTAS E DA RESPONSABILIZAÇÃO
Art. 25. Qualquer solução computacional do Poder Judiciário que utilizar modelos de Inteligência Artificial deverá assegurar total transparência na prestação de contas, com o fim de garantir o impacto positivo para os usuários finais e para a sociedade.
Parágrafo único. A prestação de contas compreenderá:
I – os nomes dos responsáveis pela execução das ações e pela prestação de contas;
II – os custos envolvidos na pesquisa, desenvolvimento, implantação, comunicação e treinamento;
III – a existência de ações de colaboração e cooperação entre os agentes do setor público ou desses com a iniciativa privada ou a sociedade civil;
IV – os resultados pretendidos e os que foram efetivamente alcançados;
V – a demonstração de efetiva publicidade quanto à natureza do serviço oferecido, técnicas utilizadas, desempenho do sistema e riscos de erros.
Art. 26. O desenvolvimento ou a utilização de sistema inteligente em desconformidade aos princípios e regras estabelecidos nesta Resolução será objeto de apuração e, sendo o caso, punição dos responsáveis.
Art. 27. Os órgãos do Poder Judiciário informarão ao Conselho Nacional de Justiça todos os registros de eventos adversos no uso da Inteligência Artificial.
CAPÍTULO X
DAS DISPOSIÇÕES FINAIS
Art. 28. Os órgãos do Poder Judiciário poderão realizar cooperação técnicacom outras instituições, públicas ou privadas, ou sociedade civil, para o desenvolvimento colaborativo de modelos de Inteligência Artificial, observadas as disposições contidas nesta Resolução, bem como a proteção dos dados que venham a ser utilizados.
Art. 29. As normas previstas nesta Resolução não excluem a aplicação de outras integrantes do ordenamento jurídico pátrio, inclusive por incorporação de tratado ou convenção internacional de que a República Federativa do Brasil seja parte.
Art. 30. As disposições desta Resolução aplicam-se inclusive aos projetos e modelos de Inteligência Artificial já em desenvolvimento ou implantados nos tribunais, respeitados os atos já aperfeiçoados.
Art. 31. Esta Resolução entra em vigor na data da sua publicação.
Ministro DIAS TOFFOLI