Recomenda a adoção de procedimentos e diretrizes a serem observados pelo Poder Judiciário para a garantia dos direitos à assistência e diversidade religiosa em suas mais diversas matrizes e à liberdade de crença nas unidades de privação e restrição de liberdade.
Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem
Lei n. 12.288, de 20 de julho de 2010
Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos - Regras de Mandela
Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente
Lei n. 12.594, de 18 de janeiro de 2012
Lei n. 7.210, de 11 de julho de 1984 - Lei de Execução Penal
Lei n. 9.982, de 14 de julho de 2000
O PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ), no uso de suas atribuições legais e regimentais,
CONSIDERANDO o direito fundamental à liberdade de consciência e de crença, bem como do livre exercício dos cultos religiosos e a prestação de assistência religiosa nas unidades civis e militares de internação coletiva (art. 5o, VI e VII, da Constituição Federal);
CONSIDERANDO a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, aprovada na Nona Conferência Internacional Americana, Bogotá, 1948, segundo a qual toda pessoa tem o direito de professar livremente uma crença religiosa, bem como de manifestá-la e praticá-la nas esferas privada e pública (art. III);
CONSIDERANDO a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, que estabelece o direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião (art. 5o, VII), e a Lei no 12.288/2010 (Estatuto da Igualdade Racial), que trata do combate à discriminação e demais formas de intolerância (arts. 2o e 18);
CONSIDERANDO as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e da Juventude (Regras de Beijing), de 1985, que dispõem sobre o dever dos Estados de promover o bem-estar de crianças, adolescentes e seus familiares sem quaisquer distinções, dentre elas, de religião (art. 6o), bem como as Regras das Nações Unidas para a Proteção de Jovens Privados de Liberdade (Regras de Havana), de 1990, que dispõem sobre a necessidade de reconhecimento, pelos Estados partes, da garantia de assistência religiosa aos(às) adolescentes e jovens privados(as) e restritos(as) de liberdade, respeitando-se os princípios da pluralidade e diversidade (item 48);
CONSIDERANDO as Regras de Nelson Mandela – Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Reclusos, especialmente aquelas que estabelecem o direito à assistência religiosa e a necessidade de respeito às mais diversas crenças (Regras 2, 65, 66, 92);
CONSIDERANDO a Lei no 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), que versa sobre o dever das entidades que desenvolvem programas de internação de proporcionar assistência religiosa àqueles(as) que desejarem, de acordo com suas crenças, e sobre o direito dos(as) adolescentes à liberdade e assistência religiosa e, também, à abstenção de participar de cultos, se assim desejarem (arts. 94, XII, e 124, XIV);
CONSIDERANDO a Lei no 12.594/2012 (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE), que dispõe sobre a proibição de discriminação dos(as) adolescentes em decorrência de sua orientação religiosa e sobre a elaboração de projetos arquitetônicos que prevejam a construção de espaços adequados para práticas religiosas, observada sua inerente diversidade (arts. 35, VIII, e 49);
CONSIDERANDO a Lei no 7.210/1984 – Lei de Execução Penal, que garante à pessoa privada de liberdade o direito à assistência religiosa (arts. 10, 11, VI, 24 e 41, VII), assegurando que não haverá qualquer distinção de natureza religiosa (art. 3o, parágrafo único), e prevê a competência dos juízes de execução criminal para inspecionar, mensalmente, os estabelecimentos penais, tomando providências para o seu adequado funcionamento e promovendo, quando for o caso, a apuração de responsabilidades (art. 66);
CONSIDERANDO a Lei no 9.982/2000, que dispõe sobre a prestação de assistência religiosa nas entidades hospitalares públicas e privadas, bem como nos estabelecimentos prisionais civis e militares;
CONSIDERANDO a Resolução CNJ no 405/2021, que estabelece ao juízo da execução a necessidade de zelar para que seja garantida a assistência religiosa às pessoas migrantes, custodiadas, acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade, especialmente o respeito a práticas religiosas, inclusive aquelas que envolvam restrições alimentares, acesso a artigos religiosos e regras de vestuário;
CONSIDERANDO a Resolução no 8/2011, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), que dispõe sobre diretrizes para a assistência religiosa nos estabelecimentos prisionais;
CONSIDERANDO a deliberação do plenário do CNJ no Ato Normativo no 0007727-05.2021.2.00.0000, na 95ª Sessão Virtual, realizada em 22 de outubro de 2021;
RESOLVE:
Art. 1o Recomenda-se aos tribunais, juízes e juízas com competência para a execução criminal e para a execução das medidas socioeducativas a adoção de procedimentos e diretrizes para assegurar à pessoa em privação ou restrição de liberdade, incluída a de natureza cautelar, o exercício dos direitos à assistência e diversidade religiosa em suas mais diversas matrizes e à liberdade de crença, abrangida a possibilidade de abstenção de quaisquer atividades de cunho religioso.
Parágrafo único. A autoridade judiciária e os Grupos de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e Socioeducativo dos tribunais (GMFs), em cooperação com as secretarias de estado com atribuição para a gestão penitenciária e socioeducativa, devem buscar a harmonização de procedimentos e rotinas administrativas, de modo a contemplar o previsto na presente Recomendação.
Art. 2o São princípios da assistência e da garantia à diversidade religiosa das pessoas privadas ou restritas de liberdade, sem prejuízo de outros decorrentes do ordenamento jurídico brasileiro:
I – a dignidade da pessoa humana;
II – a igualdade de tratamento, salvo quanto às exigências da individualização das penas e das medidas socioeducativas;
III – a inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, vedada qualquer prática de intolerância religiosa ou assédio religioso;
IV – a laicidade do Estado;
V – a impessoalidade da administração pública; e
VI – a convivência familiar e comunitária.
Art. 3o Recomenda-se que o exercício dos direitos à assistência e diversidade religiosa nos ambientes de privação e restrição de liberdade observe as seguintes diretrizes:
I – não instrumentalização para fins de disciplina ou de forma a acarretar privilégio a determinadas denominações religiosas e seus(suas) praticantes;
II – igualdade de condições para todas as pessoas privadas ou restritas de liberdade, inclusive àquelas submetidas a sanção disciplinar;
III – inclusão das múltiplas matrizes religiosas, excluída qualquer forma de direcionamento ou incidência dos órgãos públicos para restrição ou reorientação das crenças individuais;
IV – heterogeneidade na oferta e acesso, assegurada a mais ampla representatividade de religiões e crenças, a partir da identificação de pertencimento das pessoas privadas ou restritas de liberdade, bem como o respeito a todas as práticas religiosas, inclusive aquelas que envolvam aspectos e restrições alimentares, conformação de higiene, manejo do próprio corpo, acesso a artigos religiosos específicos, exceto se puderem ser utilizados como arma, e regras de vestuário;
V – respeito à liberdade para mudar de religião, consciência ou filosofia a qualquer tempo, ou mesmo para não manifestar qualquer tipo de crença, sem que isso acarrete restrição de direitos, constrangimento ou punição, além da possibilidade de participar de quantas confissões religiosas desejar;
VI – proteção do sigilo e da privacidade de atendimento à pessoa privada ou restrita de liberdade por representantes religiosos de sua crença; e
VII – complementariedade e integração com as demais assistências garantidas pela Lei de Execução Penal e pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), visando ao fortalecimento da assistência prisional e à garantia de direitos de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa em todas as suas dimensões.
Art. 4o Recomenda-se à autoridade judicial zelar para que a harmonização dos procedimentos e rotinas administrativas considere especialmente:
I – a indagação, por parte das autoridades administrativas do estabelecimento, se a pessoa privada ou restrita de liberdade, desde o ingresso na unidade prisional ou socioeducativa, deseja manifestar se pratica alguma crença ou religião, se deseja receber assistência religiosa e se possui vínculo com alguma instituição ou representante religioso, a fim de que sejam adotadas as providências cabíveis para a preservação do vínculo;
II – a garantia de acesso a livros e demais objetos de culto e de instrução religiosa, vedada a imposição de qualquer dogma, crença ou matriz religiosa por meio de obrigatoriedade ou proibição de livros, canais midiáticos e objetos exclusivos;
III – o oferecimento de assistência religiosa por instituições e representantes cadastrados(as) a pedido dessas entidades ou da pessoa em privação ou restrição de liberdade, admitindo-se recusas excepcionais ao cadastramento solicitado, mediante decisão por escrito e fundamentada, observada a razoabilidade e o respeito às múltiplas matrizes religiosas;
IV – o ingresso dos(as) representantes religiosos(as) em todos os espaços de permanência das pessoas privadas ou restritas de liberdade deve ser assegurado, desde que em situações normais de segurança, sem que haja constrangimentos nem realização de revista íntima, e aqueles(as) que ocasionarem incidentes de segurança nas unidades poderão ser notificados(as) e ter suspensas suas atividades, garantido o direito à ampla defesa e ao contraditório;
V – a elaboração de planos e calendários para as ações de assistência e diversidade religiosa por parte das instituições de privação e restrição de liberdade, de modo a estabelecer um planejamento dessas atividades, considerando a complexidade e as peculiaridades do público a ser atingido;
VI – no caso dos(as) adolescentes privados(as) e restritos(as) de liberdade, que a garantia da assistência e diversidade religiosa seja acompanhada pelas equipes técnicas das unidades socioeducativas e registrada no Plano Individual de Atendimento (PIA), observadas a autonomia e o respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento; e
VII – o fomento à instituição de Comitês Ecumênicos de Assistência Religiosa por parte dos órgãos gestores da administração penitenciária e socioeducativa nos estados e na União, com a finalidade de apoiar a gestão prisional e socioeducativa na elaboração de regulamentos, calendários e fluxos de utilização dos espaços ecumênicos nos estabelecimentos.
Art. 5o Recomenda-se à autoridade judicial com competência para a execução criminal e para a execução de medidas socioeducativas que, durante as inspeções judiciais, verifique a existência de espaço ecumênico adequado para o exercício da liberdade e diversidade religiosa nas instituições de privação e restrição de liberdade, bem como de local próprio para a guarda de objetos, itens e instrumentos utilizados em rituais e celebrações de cada segmento religioso.
§ 1o Para os fins da presente Recomendação, entende-se por espaço ecumênico adequado aquele que, além de dispor dos requisitos básicos de salubridade, é isento de objetos, arquitetura, desenhos ou outras características que especifiquem determinada religião, exceto no momento do culto.
§ 2o O espaço de assistência religiosa deve ser acessível às manifestações das diversas religiões, crenças e filosofias, vedando-se práticas proselitistas e preconceituosas.
§ 3o As práticas e manifestações públicas e coletivas de cunho religioso devem ser realizadas em espaços adequados e, apenas em caráter excepcional e de maneira individualizada, em alas, celas ou alojamentos.
§ 4o Os GMFs envidarão esforços juntos às secretarias de estado com atribuição para a gestão penitenciária e socioeducativas para que espaços ecumênicos referidos sejam implantados pelo Poder Executivo nas instituições de privação e restrição de liberdade.
Art. 6o Recomenda-se que eventuais doações provenientes de instituições religiosas sejam destinadas aos espaços ecumênicos das unidades, evitando-se sua utilização para a construção de espaços de assistência voltados a religiões determinadas ou à distribuição de benefícios e bens exclusivos para seguidores(as) de determinado credo, vedada a comercialização de itens religiosos nos estabelecimentos.
Art. 7o Esta Recomendação entra em vigor na data da sua publicação.
Ministro LUIZ FUX