Identificação
Resolução Nº 524 de 27/09/2023
Apelido
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Temas
Ementa

Estabelece procedimentos ao tratamento de adolescentes e jovens indígenas no caso de apreensão, de representação em processo de apuração de ato infracional ou de cumprimento de medida socioeducativa, e dá diretrizes para assegurar os direitos dessa população no âmbito da Justiça da Infância e Juventude ou de juízos que exerçam tal competência.

Situação
Vigente
Situação STF
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Origem
Presidência
Fonte
DJe/CNJ nº 229/2023, de 27 de setembro de 2023, p. 2-7.
Alteração
Legislação Correlata
Observação / CUMPRDEC / CONSULTA

Cumprdec 0007192-08.2023.2.00.0000.

 
Texto
Texto Original
Texto Compilado

A PRESIDENTE DO CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, no uso de suas atribuições legais e regimentais,  

CONSIDERANDO que cabe ao Conselho Nacional de Justiça a fiscalização e a normatização do Poder Judiciário e dos atos praticados por seus órgãos (art. 103-B, § 4º, I, II e III, da CF)

CONSIDERANDO o reconhecimento da organização social, costumes, línguas, crenças e tradições das populações indígenas (art. 231 da CF);  

CONSIDERANDO os direitos fundamentais assegurados a todas as crianças e adolescentes, com absoluta prioridade, nos termos do art. 227 da CF e do art. 3º do ECA;  

CONSIDERANDO que a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas reconhece o direito desses de conservar e reforçar suas próprias instituições políticas, jurídicas, econômicas, sociais e culturais (arts. 5º e 34);  

CONSIDERANDO que a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas estabelece que os Estados devem adotar medidas eficazes para garantir a proteção dos direitos dos povos indígenas, inclusive proporcionando serviços de interpretação e outros meios adequados (art. 13.2); 

CONSIDERANDO que a Convenção dos Direitos da Criança estabelece que os Estados Partes não devem negar a crianças e adolescentes indígenas o direito de, em comunidade com os demais membros de seu grupo, ter sua própria cultura, professar e praticar sua própria religião ou utilizar seu próprio idioma (art. 30); 

CONSIDERANDO os Comentários Gerais n. 11 (2009) e n. 24 (2019) do Comitê de Direitos da Criança das Nações Unidas que recomenda, com base no art. 40.3 da Convenção, a prevalência de intervenções não judiciais e o incentivo à organização e implementação de sistemas tradicionais de justiça restaurativa;  

CONSIDERANDO o Comentário Geral n. 11 (2009) do Comitê de Direitos da Criança das Nações Unidas o qual informa que, tendo em vista o direito de toda criança e adolescente a ser ouvido em todo processo judicial ou administrativo que o afete, os Estados partes devem adotar medidas para proporcionar os serviços de um intérprete sem custo algum, além de assistência técnica tendo em vista seu contexto cultural (parágrafo 76);  

CONSIDERANDO o Comentário Geral n. 11 (2009) do Comitê de Direitos da Criança das Nações Unidas que determina que os profissionais que trabalham com as forças de segurança e no Poder Judiciário devem receber formação apropriada sobre a Convenção e seus Protocolos Facultativos, em particular a necessidade de adotar medidas especiais de proteção para as crianças indígenas e outros grupos (parágrafo 77); 

CONSIDERANDO a prevalência dos métodos consuetudinários de responsabilização de seus membros (arts. 8, 9 e 10) e a preferência por sanções diversas à privação de liberdade (art. 10.2) nos termos da Convenção n. 169 sobre Povos Indígenas e Tribais da Organização Internacional do Trabalho (OIT);

CONSIDERANDO que a medida aplicada ao adolescente que tenha praticado ato infracional levará em conta sua capacidade de cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade da infração (art. 112, § 1º, do ECA);  

CONSIDERANDO os incisos VI, VIII e IX do art. 35 da Lei n. 12.594/2012, que dispõem sobre o princípio da individualização, considerando-se as circunstâncias pessoais do adolescente ou jovem, o princípio da não discriminação, notadamente em razão da etnia, e o princípio do fortalecimento de vínculos familiares e comunitários no processo socioeducativo;  

CONSIDERANDO o princípio da excepcionalidade que sujeita a aplicação da medida socioeducativa de internação (art. 121 da Lei n. 8.069/1990) e a preferência por sanções que não impliquem privação de liberdade de pessoas indígenas (art. 10.2 da Convenção n. 169 da OIT), resultando na extrema excepcionalidade da determinação da medida socioeducativa de internação para adolescentes e jovens indígenas;  

CONSIDERANDO as Resoluções CONANDA n. 91/2003, 181/2016 e 214/2018 no que se referem aos direitos de adolescentes e jovens indígenas em contato com o sistema socioeducativo, em especial o art. 3º da Resolução n. 181/2016 a respeito da pertinência da legislação quanto aos Povos e Comunidades Tradicionais para a formulação e aplicação de todas as medidas relacionadas a crianças e adolescentes de Povos e Comunidades Tradicionais e o acesso aos serviços culturalmente adequados; 

CONSIDERANDO a Resolução CNJ n. 287/2019, que estabelece procedimentos ao tratamento das pessoas indígenas acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade, e dá diretrizes para assegurar os direitos dessa população no âmbito criminal do Poder Judiciário, e que o princípio da legalidade veda que adolescente ou jovem receba tratamento mais gravoso do que o dispensado à pessoa adulta;

CONSIDERANDO a Resolução CNJ n. 454/2022, que estabelece diretrizes e procedimentos para efetivar a garantia do direito ao acesso ao Judiciário de pessoas e povos indígenas;  

CONSIDERANDO o deliberado pelo Plenário do CNJ no julgamento do Ato n. 0005990-93.2023.2.00.0000, na 2ª Sessão Extraordinária, realizada em 26 de setembro de 2023; 

  

RESOLVE:

 

Art. 1º Estabelecer procedimentos ao tratamento de adolescentes e jovens indígenas no caso de apreensão, de representação em processo de apuração de ato infracional ou de cumprimento de medida socioeducativa, e dar diretrizes para assegurar os direitos dessa população no âmbito da Justiça da Infância e Juventude ou de juízos que exerçam tal competência.

 Art. 2º Os procedimentos desta Resolução serão aplicados a todos e todas adolescentes e jovens que se autoidentificam como indígenas, com nacionalidade brasileira ou não, falantes tanto da língua portuguesa quanto de línguas nativas, independentemente do local de moradia, em contexto urbano, acampamentos, assentamentos, áreas de retomada, terras indígenas regularizadas e em diferentes etapas de regularização fundiária.

Parágrafo único. Além do disposto nesta Resolução, os procedimentos devem observar o previsto na Resolução CNJ n. 454/2022 quanto ao acesso à justiça por pessoas e povos indígenas.

Art. 3º Durante os processos de apuração de ato infracional e execução de medida socioeducativa será observado o diálogo interétnico e intercultural, nos termos do art. 5º da Resolução CNJ n. 454/2022.

 Art. 4º O reconhecimento como indígena terá início com a autoidentificação, que poderá ser manifestada em qualquer fase do procedimento investigatório ou do processo de apuração de ato infracional ou de execução de medida socioeducativa.

§ 1º Diante de indícios ou informações de apreensão, representação em processo de apuração de ato infracional em face de adolescente ou jovem indígena ou cumprimento de medida socioeducativa por adolescente ou jovem indígena, a autoridade judicial dará ciência da possibilidade de autoidentificação e informará as garantias decorrentes dessa condição, previstas nesta Resolução.

 § 2º Em caso de autoidentificação, a autoridade judicial indagará acerca da etnia ou povo, da língua falada e do grau de conhecimento da língua portuguesa.

 § 3º Diante da identificação de adolescente ou jovem indígena prevista neste artigo, serão intimados a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), o Ministério Público Federal e a respectiva comunidade indígena para que manifestem eventual interesse de intervirem na causa com objetivo de fazer com que sejam considerados e respeitados a identidade social e cultural do povo indígena, os seus costumes e tradições, suas instituições, bem como resguardar a convivência familiar e comunitária. 

§ 4º Cabe à autoridade judicial assegurar, quando necessária, a adequada assistência jurídica ao adolescente ou ao jovem, mediante a intimação da Defensoria Pública.

Art. 5º A identificação como indígena, bem como informações acerca de sua etnia ou povo e língua falada, constarão no registro de todos os atos processuais.

§ 1º Os tribunais deverão garantir que a informação sobre a identidade indígena e etnia ou povo, trazida em qualquer momento do processo, conste dos sistemas informatizados do Poder Judiciário.

§ 2º As informações de que trata o caput deste artigo constarão nas atas de todas as audiências realizadas.

 § 3º Os tribunais desenvolverão fluxos interinstitucionais para facilitar a emissão de documentação básica para adolescentes e jovens indígenas no caso de apreensão, de representação em processo de apuração de ato infracional ou de cumprimento de medida socioeducativa.

Art. 6º A autoridade judicial garantirá a presença de intérprete em todas as etapas do processo em que adolescente ou jovem indígena figure como parte:

I – se a língua falada não for a portuguesa;

II – se houver dúvida sobre o domínio e entendimento da língua portuguesa, inclusive em relação ao significado dos atos processuais e às manifestações de adolescente ou jovem indígena;

III – mediante solicitação do Ministério Público, da defesa, da Funai ou da comunidade indígena; ou

IV – a pedido do adolescente, do jovem ou do representante legal.

Parágrafo único. Dar-se-á preferência a intérprete membro da própria comunidade, sem vinculação direta com o contexto do suposto ato infracional, com a possibilidade de a escolha recair em pessoa não indígena que dominar a língua e for indicada pelo povo ou indivíduo interessado.

Art. 7º O Tribunal de Justiça zelará para que, no atendimento inicial integrado, sejam observados a agilidade no atendimento a adolescentes e jovens indígenas, os prazos legais, as garantias processuais e a adequação cultural do atendimento.

Parágrafo único. Identificados indícios da prática de tortura ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes na audiência de apresentação de adolescente ou jovem indígena, durante a apreensão ou em qualquer fase processual, a autoridade judicial adotará as providências previstas no art. 11 da Resolução CNJ n. 213/2015 e em seu Protocolo II, além das medidas de proteção cabíveis e das disposições da Resolução CNJ n. 299/2019 sobre as especificidades de crianças e adolescentes pertencentes a povos e comunidades tradicionais, vítimas ou testemunhas de violência.

Art. 8º A autoridade judicial poderá determinar, sempre que possível, de ofício ou a requerimento das partes, a realização de perícia antropológica, que garantirá a participação do representado ou representada e fornecerá subsídios para o estabelecimento de sua responsabilidade, de modo a conter no mínimo:

I – a qualificação, a etnia ou povo e a língua falada;

II – as circunstâncias pessoais, culturais, sociais e econômicas;

III – os usos, os costumes e as tradições da comunidade indígena à qual se vincula, notadamente em relação aos estágios iniciais da vida;

IV – o entendimento da comunidade indígena em relação ao ato infracional imputado, bem como os mecanismos próprios de julgamento e responsabilização adotados para seus membros; e

V – outras informações que julgar pertinentes para a elucidação dos fatos. 

Parágrafo único. O laudo pericial observará, ainda, o disposto no art. 14 da Resolução CNJ n. 454/2022.

Art. 9º A autoridade judiciária observará a extrema excepcionalidade da internação provisória em caso de adolescentes e jovens indígenas, a qual deverá ser fundamentada em indícios suficientes de autoria e materialidade, bem como na necessidade imperiosa da medida.

Art. 10. As medidas socioeducativas que correspondam à prática de atos infracionais praticados por adolescentes e jovens indígenas deverão considerar os mecanismos de resolução de conflitos próprios da comunidade indígena a que pertença, mediante consulta à comunidade.

Parágrafo único. A autoridade judicial poderá adotar ou homologar práticas de resolução de conflitos e de responsabilização juvenil em conformidade com as normas da própria comunidade indígena, tendo em vista os princípios do superior interesse dos adolescentes, bem como da proteção integral.

Art. 11. Excepcionalmente, não sendo o caso do art. 10, quando da definição da medida socioeducativa a ser aplicada a adolescente ou jovem indígena, a autoridade judicial levará em consideração as características culturais, sociais e econômicas, suas declarações e a perícia antropológica, de modo a aplicar medidas socioeducativas de meio aberto adaptadas às condições e compatíveis com os costumes, local de residência e tradições, e que permitam o acompanhamento em conjunto com a comunidade.

Parágrafo único. Recomenda-se a adequação cultural da medida de prestação de serviço à comunidade, em especial por meio do credenciamento de programas comunitários e de referências socioeducativas indígenas, para realização do acompanhamento de adolescentes e jovens no cumprimento da medida.

Art. 12. Na excepcionalíssima hipótese e imperiosa necessidade de aplicação aos adolescentes ou aos jovens indígenas de medida em meio fechado, a autoridade judiciária aplicará, sempre que possível e mediante consulta à comunidade indígena, a medida socioeducativa de semiliberdade.

Parágrafo único. Para o cumprimento do estabelecido no caput e no art. 11, a autoridade judicial poderá buscar articulação com as comunidades e organizações indígenas, bem como estabelecer parceria com a Funai ou outras instituições, com vistas à qualificação de fluxos e procedimentos e acompanhamento da medida em conjunto com a comunidade afetada.

Art. 13. Diante de adolescente ou jovem indígena que apresente indícios de transtorno mental ou problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas, a autoridade judicial, mediante consulta prévia e requisição de informações ao serviço de saúde ao qual o indivíduo porventura esteja vinculado ou avaliação técnica por equipe interprofissional, observará:

I – o princípio da excepcionalidade ao qual está sujeita a medida de internação;

II – a consideração sobre a capacidade de cumprir a medida, nos termos do § 1º do art. 121 da Lei n. 8.069/1990;

III – o direito a tratamento preferencial em serviços comunitários de saúde mental, entre outros direitos de pessoas com transtorno mental previstos na Lei nº 10.216/2001;

IV – as diretrizes da Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas.

§1º Aos casos de adolescentes e jovens indígenas que apresentem indícios de transtorno mental ou com problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas e que estejam em cumprimento de medida socioeducativa, será aplicado o art. 64 da Lei n. 12.594/2012.

§ 2º A autoridade judicial adotará medidas para garantir o respeito às culturas e valores de cada etnia, bem como a integração das ações da medicina tradicional com as práticas de saúde adotadas pelas comunidades indígenas durante eventual tratamento de adolescente ou jovem indígena que apresente indícios de transtorno mental ou problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas.

Art. 14. Nas unidades socioeducativas onde houver adolescentes ou jovens indígenas em privação ou restrição de liberdade, o juízo responsável pela execução da medida socioeducativa, no exercício de sua competência de fiscalização, zelará para que seja garantida assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa, prestada conforme sua especificidade sociocultural, de modo a considerar, especialmente:

I – para a realização de visitas sociais:

a) as formas de parentesco reconhecidas pela etnia ou povo a que pertence;

b) visitas em dias diferenciados, considerando os costumes indígenas; e

c) o respeito à cultura dos visitantes da respectiva comunidade.

II – para as atividades de integração, apoio e participação da família para efetivo cumprimento do plano individual, a garantia de intérprete, preferencialmente membro da própria comunidade indígena, quando verificadas as hipóteses do art. 6º;

III – para a alimentação em conformidade com os costumes alimentares da respectiva comunidade indígena:

a) o fornecimento regular pela unidade socioeducativa; e

b) o acesso de alimentação vinda do meio externo, com seus próprios recursos, de suas famílias, comunidades ou instituições indigenistas.

IV – para a assistência à saúde, os parâmetros nacionais da política para atenção à saúde dos povos indígenas;

V – para a assistência religiosa: 

a) o acesso de representante qualificado da respectiva religião indígena, inclusive em dias diferenciados;

b) a garantia de condições para realização de rotinas religiosas;

c) a permissão para atividades religiosas externas, a critério da equipe técnica da entidade, salvo expressa determinação judicial em contrário;

VI –  para a aprendizagem profissional, o respeito à cultura e aos costumes indígenas; e

VII –  para a educação e a leitura, o respeito ao idioma da pessoa indígena e a inclusão no conteúdo programático das atividades letivas na unidade o ensino da história e cultura dos povos indígenas.

 Art. 15. A reavaliação de medidas socioeducativas, sempre que possível, assegurará a participação de representantes indígenas do respectivo povo, preferencialmente em audiência de reavaliação realizada em local adequado.

Art. 16. Na excepcionalíssima hipótese e imperiosa necessidade de aplicação de medida de meio fechado em face das adolescentes e jovens indígena mães, gestantes, ou responsáveis por crianças ou pessoa com deficiência, pode-se aplicar a medida de semiliberdade nos termos do art. 12 desta Resolução.

Art. 17. Os tribunais manterão cadastro de intérpretes especializados nas línguas faladas pelas etnias ou povos característicos da região, bem como de peritos antropólogos.

Parágrafo único. Para o cumprimento do disposto no caput, os tribunais poderão promover parcerias com órgãos e entidades públicas e particulares com atuação junto a povos indígenas, de modo a credenciar profissionais que possam intervir em feitos envolvendo indígenas nos termos desta Resolução.

Art. 18. Os tribunais de justiça promoverão a articulação intersetorial para que as políticas sociais destinadas a adolescentes e jovens em cumprimento e pós-cumprimento de medidas socioeducativas contemplem um enfoque nos direitos de adolescentes e jovens indígenas, considerando suas características culturais, sociais e econômicas, suas declarações e a perícia antropológica, de modo a oferecer acompanhamento adequado aos costumes, local de residência e tradições.

Art. 19. Para o cumprimento do disposto nesta Resolução, os tribunais, em colaboração com as Escolas de Magistratura, promoverão cursos destinados à permanente qualificação e atualização funcional dos magistrados, magistradas, servidores e servidoras que atuam nas Varas da Infância e Juventude ou nas que exerçam tal competência, notadamente nas comarcas com maior população indígena, em colaboração com a Funai, organizações indígenas, instituições de ensino superior ou outras instituições especializadas.

Art. 20. O Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas elaborará, em 240 (duzentos e quarenta) dias após a entrada em vigor desta Resolução, Manual voltado à orientação dos tribunais e magistrados e magistradas quanto à implementação das medidas previstas nesta Resolução.

§ 1º Aplicam-se, no que for adaptável aos processos de apuração de ato infracional e execução de medida socioeducativa, as orientações aos tribunais e magistrados(as) contidas no Manual Resolução CNJ n. 287/2019, enquanto não for elaborado o Manual previsto no caput.

§ 2º O Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas produzirá material informativo sobre esta Resolução em linguagem acessível voltado a adolescentes e jovens indígenas.

Art. 21. Esta Resolução entra em vigor 90 (noventa) dias após sua publicação.

  

Ministra ROSA WEBER.

 

ANEXO DA RESOLUÇÃO N. 524, DE 27 DE SETEMBRO DE 2023.

 

EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS

Trata-se de Resolução do Conselho Nacional de Justiça que estabelece procedimentos ao tratamento de adolescentes e jovens indígenas no caso de apreensão, representação em processo de apuração de ato infracional ou cumprimento de medida socioeducativa, e dá diretrizes para assegurar os direitos dessa população no âmbito da Justiça da Infância e Juventude ou de juízos que exerçam tal competência.

De acordo com os dados estatísticos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2023, a população indígena do Brasil compreende 1,7 milhão de pessoas, distribuídas em 305 etnias e 274 línguas indígenas[1]. Refere-se, portanto, de povos diversos, que vivem em todo o território nacional, em áreas urbanas e rurais, e que compõem o segmento populacional menos favorecido do ponto de vista econômico, do acesso à educação formal, à saúde e à habitação.

No âmbito normativo, verifica-se que a Constituição Federal de 1988 é expressão do paradigma multicultural ao reconhecer os direitos individuais e coletivos dos povos indígenas, de modo a superar uma concepção integracionista.

No cenário internacional, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas estabelece, no artigo 13.2, que os Estados devem adotar medidas eficazes para garantir a proteção dos direitos dos povos indígenas, inclusive proporcionando serviços de interpretação e outros meios adequados. Já a Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), internalizada pelo ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto n. 5.051/2004[2], significa um avanço para uma concepção pluricultural do ordenamento jurídico, rompendo com o monismo, reconhecendo as tradições, os costumes, as autoridades e o direito indígena em convivência com as autoridades e normas estatais.

A necessidade de atentar-se para as especificidades da população indígena, nos moldes das citadas normas, ensejou a edição da Resolução CNJ n. 287/2019, que estabelece procedimentos ao tratamento das pessoas indígenas acusadas, rés, condenadas ou privadas de liberdade, e dá diretrizes para assegurar os direitos dessa população no âmbito criminal do Poder Judiciário. Na mesma esteira, este Conselho aprovou a Resolução CNJ n. 454/2022, que estabelece diretrizes e procedimentos para efetivar a garantia do direito ao acesso ao Judiciário de pessoas e povos indígenas.

Apesar da relevância das mencionadas Resoluções, identificou-se a necessidade de regulamentação que contemplasse as singularidades inerentes aos adolescentes e jovens indígenas.

Com efeito, há normas e diretrizes próprias que precisam ser consideradas, a exemplo do princípio da prioridade absoluta da criança e adolescente, expressamente contemplado no art. 227 da Constituição Federal.

A Convenção sobre os Direitos da Criança, por sua vez, estabelece que os Estados Partes não devem negar as crianças e aos adolescentes indígenas o direito de, em comunidade com os demais membros de seu grupo, ter sua própria cultura, professar e praticar sua própria religião ou utilizar seu próprio idioma (art. 30).

Outrossim, a Lei n. 12.594/2012 – que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – prevê como princípios que devem reger a execução das medidas socioeducativas: a legalidade, não podendo o adolescente receber tratamento mais gravoso do que o conferido ao adulto; a excepcionalidade da imposição das medidas; a brevidade da medida em resposta ao ato cometido. Também é expressamente previsto o princípio da não discriminação do adolescente, notadamente em razão de etnia, gênero, nacionalidade, classe social, orientação religiosa, política ou sexual, ou associação ou pertencimento a qualquer minoria ou status.

Nesse sentido, mostrou-se imprescindível a edição de ato regulamentar pelo Conselho Nacional de Justiça com procedimentos e diretrizes unificados, no âmbito da jurisdição infracional, capazes de refletir o necessário respeito ao reconhecimento da organização social, costumes, línguas, crenças e tradições das populações indígenas adolescentes, bem como os princípios peculiares que devem reger o sistema socioeducativo. O intuito, portanto, é buscar a atuação do Poder Judiciário em plena consonância com as normas internacionais e internas aplicáveis à matéria.

Diante dessa constatação, o Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas (DMF/CNJ) empreendeu minucioso e extenso estudo da matéria, com a colaboração do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), no âmbito do Programa Fazendo Justiça. Ademais, foi franqueada a participação de atores do sistema de justiça, especialistas na matéria, jovens indígenas e representantes da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).

O resultado do trabalho culminou em uma minuta inicial, que ainda contou com a contribuição de magistrados(as) e integrantes do Fórum Nacional da Infância e da Juventude (FONINJ). Após meticulosa e sistemática análise das sugestões apresentadas, houve a consolidação da Resolução ora apresentada.

Resultante do exercício das atribuições previstas no art. 103-B, § 4º, da Constituição da República, a proposta é estruturada sobre as fontes constitucionais, internacionais e legais pertinentes, e parte de conceito de que povos e comunidades tradicionais são aqueles que assim se autodeclaram, segundo os critérios estabelecidos pela Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho.

Está Resolução estabelece a necessidade de se respeitar o diálogo interétnico e intercultural, visando aproximar a atuação dos órgãos que integram o Sistema de Justiça com as diferentes culturas e as variadas formas de compreensão da justiça dos direitos.

Dispõe-se, ainda, que em caso de autoidentificação de adolescente ou jovem indígena, haverá a intimação da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), do Ministério Público Federal e da respectiva comunidade indígena. O intuito é que manifestem eventual interesse de intervirem na causa, com objetivo de fazer com que sejam considerados e respeitados a identidade social e cultural do povo indígena, os seus costumes e tradições, suas instituições, da mesma forma que resguardar a convivência familiar e comunitária.

A Resolução também contempla a necessidade de presença de intérprete nos casos em que é inerente para assegura a garantia do devido processo legal. Ademais, ressalta a possibilidade de ser determinada a realização de perícia antropológica, a fim de oferecer subsídios mais qualificados para a decisão da autoridade judicial.

Esta Resolução, evidencia ainda, o princípio da excepcionalidade da aplicação da Medida socioeducativa de internação prevista no Estatuto da Criança e Adolescente, prevendo que, nos casos de imperiosa necessidade de aplicação de medida em meio fechado envolvendo adolescentes e jovens indígenas deve ser, sempre que possível, aplicada a medida socioeducativa de semiliberdade.

Por fim, em respeito aos costumes indígenas, a Resolução também trata do exercício dos direitos de visita, do direito à alimentação e de assistências à saúde e religiosa. 

Dessa forma, a regulamentação busca reafirmar o compromisso constitucional da prioridade absoluta das crianças e adolescente, bem como o respeito à sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições dos povos indígenas. São essas as razões que justificaram a elaboração da presente Resolução deste Colendo Conselho Nacional de Justiça.

  

 

 


 

[1] Dados do Censo 2022 revelam que o Brasil tem 1,7 milhão de indígenas — Fundação Nacional dos Povos Indígenas (www.gov.br)

[2] Atualmente revogado pelo Decreto 10.088, de 5 de novembro de 2019, que consolidou todos os decretos de promulgação de convenções e recomendações da Organização Internacional do Trabalho - OIT ratificadas pela República Federativa do Brasil.